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A memória

Carla Dalmaz e Carlos Alexandre Netto

Considere aquilo que você sabe a respeito do mundo, dos outros e de você mesmo: toda essa informação foi adquirida através da experiência e está armazenada em suas memórias. Somos seres com história, construímos nossa identidade através de um processo que mescla as experiências vividas no ambiente e as nossas vivências interiores; assim, somos quem somos porque aprendemos e lembramos. A memória é uma das funções cognitivas mais complexas que a natureza produziu, e as evidências científicas sugerem que o aprendizado de novas informações e o seu armazenamento causam alterações estruturais no sistema nervoso.

A memória desperta o interesse e a imaginação do homem desde a Antigüidade, contudo os primeiros estudos científicos foram realizados há pouco mais de um século. Hoje, graças aos avanços das ciências biomédicas, adquirimos uma razoável compreensão acerca dos mecanismos da formação da memória. Apoiados no fato de que animais inferiores têm encéfalos mais simples do que aqueles dos mamíferos superiores (espécie humana), e que seu comportamento e capacidade de aprender e lembrar são mais acessíveis às técnicas de laboratório, os estudos em invertebrados têm um papel fundamental para o conhecimento da memória. Estudando a biologia celular do armazenamento da memória no caramujo marinho Aplysia, Eric Kandel e colaboradores (1) demonstraram que as funções e as moléculas específicas de alguns neurônios mudam quando o animal aprende uma resposta comportamental. A importância desses trabalhos para o desenvolvimento das neurociências foi reconhecida com o Prêmio Nobel de Medicina, concedido ao professor Kandel no ano 2000.

Os neurônios são células especializadas, cuja principal função é comunicar-se com outros neurônios e com os órgãos que realizam as ações (como os músculos e o coração); em conseqüência do processamento de uma fantástica quantidade de informações, a atividade integrada dos neurônios determina e modula o comportamento dos indivíduos. A capacidade dos neurônios de se transformar e de adaptar sua estrutura em resposta às exigências ambientais (externas) ou internas é chamada de plasticidade neural. Foi no início do século passado que o anatomista Ramón y Cajal formulou a hipótese de que a eficácia das conexões sinápticas (áreas de contato funcional entre os neurônios) não é fixa, porém plástica e modificável. Ele postulou que a força sináptica pode ser modificada pela atividade neural e sugeriu que o aprendizado poderia utilizar essa plasticidade através do desenvolvimento de novos processos sinápticos. Muitos estudos apóiam esta hipótese.

A experiência é o fator que mais estimula a plasticidade, em espécies tão diversas quanto insetos e humanos. Em mamíferos de laboratório a experiência produz mudanças estruturais e funcionais no cérebro, como aumento no tamanho e ativação da função dos dendritos (as regiões terminais dos neurônios), formação ou eliminação de sinapses e aumento da atividade metabólica; tais mudanças estão correlacionadas com alterações funcionais dos neurônios e do comportamento do indivíduo. Esse repertório de mudanças demonstra que a atividade neural resultante da interação do organismo com o meio externo pode modificar a estrutura do sistema nervoso em qualquer período da vida, mesmo após a maturidade. Assim, aprendizado e plasticidade são interdependentes e se pode concluir que a experiência, ao modificar o comportamento, está modificando algumas sinapses no sistema nervoso, ou vice-versa. Em decorrência, postula-se que as mudanças plásticas possam ser os loci responsáveis pelo armazenamento da memória.

Outra abordagem experimental bastante útil para o estudo da biologia da memória é a farmacologia comportamental, que busca decifrar como os sistemas neurais participam na sua modulação. A infusão de substâncias com determinadas ações, em regiões específicas do cérebro, têm revelado as estruturas cerebrais envolvidas nos diferentes tipos de memória, assim como os sistemas de neurotransmissores (moléculas especiais responsáveis pela comunicação entre os neurônios) envolvidos na consolidação da memória.

Diferentes etapas são necessárias para a fixação da memória, e durante um certo tempo após o aprendizado a memória permanece vulnerável a interferências. A maior parte deste processo de consolidação se completa nas primeiras horas após o aprendizado. No entanto, o processo de estabilização da informação armazenada se estende por um prazo mais longo e envolve alterações contínuas na própria organização da memória. Toda vez que lembramos de algo estamos re-construindo e adicionando alguma informação àquele arquivo de memória.

LEMBRAR IMPLICA EM UM PROCESSO ATIVO DE RECONSTRUÇÃO O conteúdo emocional das memórias também afeta a maneira como são armazenadas e, portanto, a sua evocação, a facilidade com que são lembradas. Por exemplo, as pessoas recordam especialmente bem eventos acompanhados de elevada emocionalidade. As emoções melhoram a memória declarativa (aquela para fatos, idéias e eventos, e toda a informação que pode ser trazida ao reconhecimento consciente e expressa através da linguagem) através da ativação da amígdala (um conjunto de núcleos nervosos situados nos lobos temporais). James McGaugh e colaboradores (2), da Universidade da Califórnia, em Irvine, demonstraram a importância da amígdala na mediação de memórias emocionais, tanto em animais de laboratório quanto em humanos. Os eventos bioquímicos relacionados com a formação da memória podem ser regulados logo após a sessão de aprendizado em animais, por meio de mecanismos hormonais e neuro-humorais relacionados ao estresse e à ansiedade, modulando sinapses GABAérgicas, noradrenérgicas e colinérgicas. E, ainda, vias nervosas relacionadas ao controle do humor também podem interferir na formação da memória, incluindo aí as vias dopaminérgicas e serotonérgicas.

A evocação da memória, por sua vez, não é simplesmente a reativação de fragmentos distribuídos que constituem o engrama, representação da informação no sistema nervoso. Pode acontecer que apenas alguns fragmentos do engrama sejam ativados, ou podemos confundir pensamentos e associações provocados diretamente pela mesma dica, e estudos têm demonstrado a falibilidade da memória humana. Como já comentamos, lembrar implica num processo ativo de reconstrução e não se assemelha a assistir a uma fita de vídeo do passado. Além disso, o humor e a motivação também podem influenciar o quê, e o quanto, nós lembramos; este fenômeno é denominado de dependência de estado.

LOCALIZAÇÃO DAS MEMÓRIAS Um tema acerca do qual se sabe muito pouco é o da localização das memórias. São elas localizadas numa região específica ou distribuídas pelo encéfalo? O psicólogo Donald Hebb propôs um armazenamento distribuído para a memória. Há evidências de que não existe uma região única para a memória e que muitas partes do encéfalo participam da representação de um evento singular. Isto não significa que todas as regiões sejam igualmente envolvidas no armazenamento da informação: diferentes áreas armazenam diferentes aspectos das memórias. Estudos de lesão, em humanos e em animais de laboratório, e as novas técnicas de imageamento funcional têm estabelecido, por exemplo, que as regiões do córtex cerebral que estão envolvidas na percepção e no processamento da cor, da forma e do tamanho dos objetos estão próximas, se não forem idênticas, às regiões importantes para a memória de objetos. Acredita-se que o engrama de uma memória declarativa esteja distribuído entre diferentes regiões encefálicas, e que estas regiões são aquelas especializadas para determinados tipos de percepção e processamento da informação.

Essa distribuição das memórias em diferentes regiões encefálicas também depende do tipo de memória e do tempo decorrido após a aquisição da informação. No caso da formação da memória da tarefa de esquiva inibitória, que tem sido um dos paradigmas experimentais em roedores, as evidências implicam a ativação de receptores AMPA (um dos tipos de receptor para o glutamato, um neurotransmissor excitatório) no hipocampo durante as primeiras três horas após o treino. Uma cadeia de eventos bioquímicos é acionada no hipocampo e, pouco tempo depois, diversas estruturas do córtex cerebral também são ativadas. Para a evocação, porém, as estruturas necessárias dependerão do tempo transcorrido após o aprendizado: enquanto o hipocampo é necessário até uns poucos dias após o treino, já não o será após 30 dias (3).

Considerando ainda o tempo decorrido entre a aquisição da informação e a sua evocação, a memória pode ser dividida em dois tipos: de curta e de longa-duração. Uma questão que foi durante muito tempo pesquisada buscava esclarecer se a memória de curta duração é uma etapa da consolidação da memória de longa duração, ou se esses dois processos são independentes. Poucos anos atrás, Izquierdo e colaboradores (3), utilizando a tarefa da esquiva inibitória, observaram que tratamentos que interferem com sistemas de neurotransmissores no hipocampo, ou nos córtices entorrinal ou parietal, afetam diferentemente esses dois tipos de memória: podem bloquear a memória de curta duração sem afetar a memória de longa duração; ou podem alterar ambas de forma distinta (melhorando uma e dificultando a outra). Tais resultados sugerem, claramente, que esses dois processos envolvem mecanismos diferentes e, em certa medida, independentes.

As memórias, porém, não são armazenadas de forma integral e, mesmo estabelecidas e consolidadas, não são permanentes. Este é o fenômeno do esquecimento: somos melhores na generalização e na abstração de conhecimentos do que na retenção de um registro literal de eventos. O esquecimento é fisiológico e ocorre continuamente, enfraquecendo o traço de memória do que foi aprendido. De fato, esquecer é uma função essencial ao bom funcionamento da memória: seria impossível, e pouco prático, evocar com riqueza de detalhes todas as informações que necessitamos num único dia.

Na doença de Alzheimer, uma condição neurodegenerativa, o esquecimento ocorre em grau patológico e prejudica irreversivelmente a vida cognitiva do paciente. A amnésia afeta, inicialmente, os fatos recentes e a capacidade de adquirir novas memórias, e evolui afetando a memória remota do indivíduo: o reconhecimento dos familiares, os hábitos, as habilidades e, por fim, a própria identidade. Causada pela deposição de substância amilóide no parênquima cerebral e pela presença de emaranhados neurofibrilares (uma estrutura anormal do esqueleto neuronal), sobretudo nas regiões associadas à fala e à memória, os achados neuropatológicos do Alzheimer forneceram hipóteses de trabalho que têm contribuído para o nosso conhecimento sobre a memória: regiões cerebrais envolvidas, sistemas de neurotransmissores e sua organização funcional.

Todavia, apesar de todo conhecimento acumulado, as ferramentas terapêuticas para o tratamento farmacológico do Alzheimer e de outras demências são ainda pouco específicas e eficazes. A inibição da enzima acetil-colinesterase e a oferta do precursor do neurotransmissor mais afetado na doença, a acetil-colina, trazem benefícios discretos para um grupo reduzido de pacientes. Os agentes nootrópicos, ativadores dos núcleos aminérgicos do tronco cerebral, também melhoram o desempenho cognitivo. Porém, como desconhecemos quais são os mecanismos fundamentais do armazenamento e da evocação da memória ainda não é possível tratar com segurança e eficácia os sintomas das demências nem aqueles comuns ao envelhecimento.

Mas se os fármacos ainda deixam a desejar, é importante lembrar que a atividade intelectual continuada pode prevenir ou retardar o aparecimento do Alzheimer, e que a exposição a situações de novidade facilita a evocação da memória, tanto em pacientes como em voluntários normais. A detecção e a resposta à novidade envolvem a ativação do hipocampo e a liberação da beta-endorfina pelo hipotálamo, um dos peptídeos responsáveis pela modulação da evocação. Além das possibilidades para o desenvolvimento da pesquisa, estes achados revelam um fato importante: já que a manutenção da atividade neural é um dos fatores capazes de proteger os neurônios da degeneração, a leitura, a prática de atividades criativas e a disposição em viver novas situações e conhecer novos ambientes são hábitos de vida muito saudáveis em termos cognitivos.

O cérebro é uma estrutura em permanente construção, assim como o são repertório comportamental e as memórias do indivíduo. As evidências científicas indicam que a plasticidade sináptica é a responsável pela capacidade de transformação dos neurônios e pela aquisição das memórias, e que a manutenção de atividades criativas e estimulantes pode melhorar a evocação da memória; embora alguns dos prováveis mecanismos já tenham sido identificados, temos a clareza de que ainda há muito a ser descoberto. A memória e a plasticidade estão, sem dúvida, entre as mais interessantes e enigmáticas fronteiras das neurociências.

Carla Dalmaz e Carlos Alexandre Netto são pesquisadores do Departamento de Bioquímica, Instituto de Ciências Básicas da Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Referências bibliográficas:

  1. Squire, L. R. e Kandel, E.R. Memória: da mente às moléculas. Porto Alegre, ArtMed Editora S.A. 2003.
  2. McGaugh, J.L. "Memory consolidation and the amygdala: a systems perspective". Trends Neurosci; 25(9): 456. 2002.
  3. Izquierdo, I. Memória. Porto Alegre, ArtMed Editora S.A. 2002.